Vai ter travesti com saúde sim!

Aqui, a gente apresenta opiniões acerca de temas relacionados às discussões de gênero, sexualidade, racismo e LGBTfobia, sob um olhar do Feminismo e da Teoria Queer.
Dizer que a luta LGBTQ+ é marcada por intensa invisibilidade, inclusive no setor público, não choca ninguém (infelizmente). Com pouquíssima representatividade e um alto nível de exclusão, fica extremamente difícil legislar para essa minoria. Prova disso é que somente depois de 186 anos de independência, 117 anos de república e 23 anos de democracia o Brasil realizou a 1ª Conferência Nacional LGBT em Junho de 2008.

O tema “Direitos humanos e políticas públicas: o caminho para garantir a cidadania LGBT” proporcionou espaço para o debate dos rumos das políticas públicas voltadas para a população LGBTQ+. Desta conferência, também surgiu o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, com 51 diretrizes e 180 ações que deveriam nortear a ação governamental voltada a esse grupo.

Mas, como se sabe, os discursos de ódio ainda encontravam amparo em grandes órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) que até junho de 2018 - 10 anos após a conferência realizada no Brasil - mantinha a transexualidade na lista de transtornos mentais. Segundo Shekhar Saxena, diretor do departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS, a mudança ocorreu “porque não há evidências de que uma pessoa com um transtorno de identidade de gênero deva ter automaticamente um transtorno mental, embora aconteça muito frequentemente seja acompanhado de ansiedade ou depressão” por motivo óbvios.


Apesar disso, a OMS ainda mantém a transexualidade na Classificação Internacional de Doenças, a CID-11, já que em diversos países os setores público e privado de saúde não reembolsam tratamentos que não estejam diagnosticados na lista. Isso garante que o Brasil tenha políticas públicas para o cuidado e a manutenção da saúde de pessoas transexuais como o acompanhamento psicológico antes e depois da cirurgia de redesignação de sexo, além da terapia hormonal que foram recentemente incorporados aos outros serviços já prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Apesar do despreparo de alguns profissionais, o SUS oferece gratuitamente, através de dois grandes componentes, medidas que auxiliam no cuidado à população trans: a Atenção Básica e a Atenção Especializada. A Básica é, geralmente, o primeiro contato dessa população com um médico, que faz avaliações, solicita exames e encaminha os paciente para áreas de atendimento individualizado. Já a Atenção Especializada é dividida em duas modalidades: a ambulatorial (acompanhamento psicoterápico e hormonioterapia) e a hospitalar (realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório). A idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos e para os procedimentos hospitalares é de 21 anos.

Devido a complexidade do processo há a necessidade de avaliações psicológicas e psiquiátricas por um período de até 3 anos com diagnóstico que pode ou não encaminhar o paciente para a cirurgia, gerando grandes filas de espera e demora para a realização do procedimento. Outro agravante são as poucas unidades disponíveis para atendimento especializado. Ao todo, existem apenas cinco hospitais especializados para o atendimento da população trans. A faloplastia, cirurgia destinada a homens trans que querem aumentar o tamanho do clitóris para que se assemelhe a um pênis, por exemplo, é realizada apenas em Goiânia e ainda em caráter experimental.

Os esforços são grandes e necessários, mas é preciso enxergar que muitas pessoas não buscam auxílio médico por desconhecer que têm direito de usufruir dessas políticas. Vale lembrar que o preconceito é outro grande problema que tange a relação de pessoas transexuais com o sistema de saúde.

Um estudo feito pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2016, com 620 pessoas trans, informou que 43,2% dos entrevistados afirmaram evitar serviços de saúde pelo simples fato de ser uma pessoa trans. Mais da metade, 58,7%, afirmou já ter sido vítima de discriminação durante um atendimento médico e revelou só procurar um hospital em caso de grave emergência. Somente 17,8% dos entrevistados disseram nunca ter sofrido discriminação durante uma consulta.


Apesar de todos os perrengues, não se pode negar a importância de atendimento médico gratuito especialmente para uma população tão marginalizada, cheia de nuances e necessidades tão específicas. Conforme cita Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), “a porta de entrada dessas pessoas no serviço público era pelo serviço de Aids, com a instituição desses ambulatórios, essa população começou a entrar no sistema de saúde por outras frentes que não a Aids. A instituição desses serviços, para além da cirurgia, para além das especificidades, dá mais acesso à saúde para essa população”

O Espírito Santo, especificamente, ampara a causa LGBT através da Emenda Constitucional número 84 de 13 de junho de 2012 que proíbe, através da Constituição Estadual, a discriminação em razão da orientação sexual. A lei Nº 10.613, de 22 de dezembro de 2016, por sua vez, institui o Conselho Estadual para a Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - Conselho Estadual LGBT. E uma lei de abrangência municipal define como garantia dos cidadãos de Vila Velha o tratamento sem discriminação de qualquer natureza, colaborando para a inclusão social e assegurando legalmente os direitos das monas capixabas.

Sabendo que a corrente interseccional do movimento feminista defende a não hierarquização das diversas opressões (raça, gênero, sexo e classe), é possível afirmar que, qualquer política pública se torna mais justa quando pensada por esse viés teórico. Neste caso, por exemplo, a visão interseccional permite enxergar as fragilidades específicas da população trans e elaborar projetos como os acima mencionados que supram as necessidades que são características deste grupo, sem priorizar apenas uma ou outra demanda. Assim o SUS é um sistema capacitado para atender essa minoria social e, ao mesmo tempo, dar conta de demandas básicas que emanam da população em geral.

Pensar o SUS através da lógica interseccional é, antes de tudo, visualizar o Brasil com todas as suas nuances e diferenças, compreendendo que cada parcela da população merece e precisa de cuidados, exames, cirurgias e tratamentos específicos. Mais importante que isso, a lógica interseccional nos permite ser empáticos e atender amplamente a todas as necessidades sem que alguma delas seja excluída ou menosprezada como têm acontecido atualmente com a saúde da população LGBTQ+.

Portanto, já que nossos direitos são constantemente questionados e sempre são conquistados a duras lutas, é vital nos apropriarmos de toda e qualquer lei que nos ampare e proteja de algum modo. É válida a observação de que as leis que amparam a causa LGBTQ+ geralmente amparam outras minorias sejam elas étnicas ou raciais. Sendo assim, uma sociedade que pensa políticas públicas para essa população, especialmente sob o viés interseccional, é também uma sociedade mais justa e isonômica para todos.

Abaixo, um documentário que mostra de maneira mais profunda a relação das pessoas trans com o Sistema Único de Saúde:



Autora: Vitória Bordon

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